10/10 com Alê Garcia

Reconhecido pela Forbes como um dos 20 Creators Negros Mais Inovadores do País, Alê Garcia é tão múltiplo em seus talentos quanto o conteúdo que coloca no mundo. Alê esbanja criatividade em seus mais diversos papéis e projetos sobre cultura negra, se mostrando um verdadeiro criador em série. Do podcast Negro da Semana, que em seu primeiro ano de existência já figurava entre os melhores do ano nas principais plataformas de streaming de áudio, à plataforma casablack e o livro Negros Gigantes: as personalidades que me fizeram chegar até aqui. Ou seja, quando o assunto é criatividade e cultura negra, é com ele mesmo. Confira, a seguir, nosso bate-papo exclusivo:

1- Como você começou a trabalhar com criação de conteúdo?

A ideia surgiu quando parei para pensar sobre alguns números e fatos: como nós, negros, sendo 55% da população, temos representatividade tão pífia. Sobre como o conhecimento da nossa cultura e contribuição na humanidade é subestimada. Mas o meu maior start, realmente, foi quando pensei no João, meu filho, com então seis anos, e me questionei: "Que histórias meu filho vai ouvir sobre pessoas como ele?".

Foi quando deixou de ser sobre números e passou a ser sobre pessoas. Sobre a necessidade de contar da maneira correta a história de negros como nós, que realizaram e realizam grandes feitos ao longo da história. Sobre nós, negros, sermos donos de nossas próprias narrativas.

Como escritor, eu sempre fui apaixonado por narrativas e programas de rádio, o que contribuiu para eu me apaixonar por podcasts. Resolvi então unir minhas duas paixões e contar a história desses negros incríveis, de maneira que eu pudesse fazer tudo sozinho: pesquisar, escrever, produzir, gravar, editar e distribuir.

O podcast Negro da Semana cresceu de forma mais veloz do que eu poderia imaginar. Em 2019, com quatro meses de podcast, eu fui selecionado pelo YouPix como um dos 30 projetos de conteúdo a participar do YouPix Creators Boost, o único programa de desenvolvimento de creators no mundo. Desde então, foram vários dias de treinamentos, mentorias, reuniões com marcas e eventos de networking.

Durante esse período em São Paulo, assinei com uma rede de podcasts. Em seguida, passei a ser agenciado por uma importante agência de criadores de conteúdo. E, em novembro do mesmo ano, fui convidado para palestrar sobre construção de roteiros para podcast na primeira edição mundial do Spotify for Podcasters Summit. No ano de seu lançamento, o meu podcast entrou na lista dos melhores do ano do Spotify, do Deezer e da Apple Podcasts. E, na sequência, assinei contrato de um ano para um projeto de conteúdo com o Bradesco.

Ou seja, desde cedo, tudo foi me fazendo crer que eu estava no caminho certo! 

2 - Você é um criador serial, com diversos projetos e ativo em multiplataformas. Conte para nós como você consegue dar conta de tudo isso? 

Eu produzo meu conteúdo a partir de uma lista gigante que inclui todos aqueles negrxs que amo, e toda produção de cultura afrocentrada sobre as quais quero falar.  Pensa bem: já tem muitos canais falando sobre cinema e séries, sobre literatura e música, mas quais são focados exclusivamente em produção negra? Uma produção tão rica, que me faz ter que fazer uma pesquisa intensa sobre cada assunto, passando a criar os roteiros que se transformarão nos conteúdos para as diversas plataformas nas quais estou presente.

Para dar conta, é preciso organização: criação de calendário mensal, ajuda de ferramentas como Trello, Google Calendar e muita disciplina. Mas, como falei em palestra recente no Google Black Creator, no qual sou mentor, somos uma empresa com a nossa cara. Precisamos entender o que falamos, como falamos, para quem falamos, quando falamos, por que falamos e endereçar estrategicamente nosso conteúdo sem esquecer isso nunca.

3 - Como é o seu processo criativo?

A qualquer momento sou instigado por algo que me atinge: filmes, livros, músicas, séries, documentários, notícias, descobertas históricas. Anoto estes temas para pesquisar mais depois e entender como posso encaixar no meu calendário e em que tipo de conteúdo deverá se transformar: podcast, vídeo, post com imagem, thread no Twitter… É um processo diário e contínuo.

 

4 - Quais os principais desafios de empreender na área da comunicação, cultura e das artes? 

Organização. Há muitos temas apaixonantes para serem explorados. Só é preciso mais horas no dia para dar conta de tudo. A comunicação, a cultura e as artes são extremamente prolíficas - universalmente e a todo momento nos presenteando com novas realizações e descobertas sobre fatos passados.

É um desafio gigante organizar tudo isso, considerando relevância, paixão e o que tocará mais a minha comunidade.

5- Qual sua maior fonte de inspiração?

Realizadores negros. Alguns extremamente consagrados, em todas as áreas. Pessoas como John Coltrane, Spike Lee, James Baldwin, Elza Soares, Conceição Evaristo, Mano Brown, Muhammad Ali, Jordan Peele, Emicida, Sister Rosetta Tharpe… Nossa, essa lista é infinita. Mas também me inspira muito o que novos realizadores estão fazendo, contemporâneos meus: Issa Rae, Rincon Sapiência, Melina Matsoukas, Donald Glover, Rachel Reis, Solange, Coruja BC1, Jota.pê, e por aí vai.

Pessoas fazendo acontecer, com excelência, me inspiram demais.

6 - Nossa edição é toda baseada na criatividade brasileira, no nosso jeitinho de fazer as coisas, o tal do borogodó. Na sua opinião, por que o brasileiro é tão criativo? 

Penso que é uma união de fatores: escassez, referências estrangeiras e riquezas culturais africanas. Em se tratando de criatividade negra, acredito demais em um motor ancestral que nos impulsiona e na criatividade necessária para sobreviver, superar, construir, expandir, quando aos negros recém-libertos nada foi oferecido. Então, foi preciso criar estratégias. Empreender, conceber artisticamente, pensar literariamente a partir de realidades muito diferentes daquelas até então oferecidas pela cultura eurocêntrica. 

7 - Qual a importância da representatividade no mercado da criatividade?

Existe uma frase da ativista norte-americana Marian Wright Edelman que diz: "Você não pode ser aquilo que não pode ver". É uma frase que deixa muito clara a importância de nos vermos representados para aspirarmos a conquistas que, de outras formas, talvez não soubéssemos que nos são possíveis.

A importância da representatividade é fundamental para a formação da nossa identidade. Porque a nossa identidade também é forjada por obras que são capazes de fornecer os modelos daquilo que significa ser uma pessoa. Nossa sociedade e cultura também se constroem através de representações ficcionais, imagéticas e culturais, fundamentais para nosso senso humano e fortalecimento da nossa existência.

No livro A Cultura da Mídia, de Douglas Kellner, há uma passagem do autor que diz que "a cultura veiculada pela mídia, cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade".

Ou seja, a identidade de uma nação também é forjada pelas mídias, representações artísticas e plataformas de conteúdo capazes de fornecer os modelos daquilo que significa ser uma pessoa. É através dessa cultura de mídia que também é construído nosso senso de classe, etnia, raça, justiça e igualdade.

8 - Conte-nos mais sobre o seu novo livro Negros Gigantes.

 Falar de cultura negra se tornou meu propósito quando comecei a me dedicar ao meu podcast Negro da Semana, e entendi sua importância e como foi tão bem recebido. Esse propósito logo se viu tão grande, que passei a falar sobre isso em todas as plataformas, buscando empoderar e inspirar outras pessoas, assim como eu sempre me empoderei e me inspirei pela trajetória incrível dos que vieram antes de mim.

A forma como a cultura afro é subestimada me entristece muito, assim como a consequência óbvia disso: o pouco conhecimento que os negros têm de sua própria história. Nós somos pilar fundamental da cultura brasileira. E muitas pessoas não têm noção da grandiosidade das nossas contribuições científicas, políticas, arquitetônicas, literárias e artísticas.

A ideia de lançar Negros Gigantes é uma consequência deste propósito e incômodo: com este livro, quis revisitar a minha trajetória, apresentar a história daqueles que me impulsionaram — desde os meus dez anos de idade, até hoje — e registrar isso: para que essas histórias sejam motivadoras e potencializadoras de outras grandes histórias.

Eu quis trazer pessoas negras muito diferentes, em origens, abordagens, nacionalidades, formação cultural e profissional para mostrar a diversidade dentro da negritude. Mas, obviamente, que suas principais áreas de atuação são os pontos que mais me tocaram e me influenciaram nas suas trajetórias.

Sendo assim, este é um livro no qual falo sobre teatro, cinema e televisão; sobre música, literatura, política, educação e militância. Falo sobre esses pilares, sobre a presença de pessoas negras historicamente ocupando ou não esses lugares, mas falo sobre os desdobramentos que daí nascem: como é ser, por exemplo, uma menina negra e pobre no Brasil e sonhar em ser bailarina e atriz?

Há pontos de contato na história de todas essas pessoas. Dores que se assemelham. Há os "nãos" que nos unem como pessoas negras. Esses heróis se tornaram referências por sua humanidade e pelas formas muito naturalizadas com que foram surgindo na minha vida: ouvindo um disco, lendo um livro, indo a um baile, conhecendo pela TV. E uma vez que os conhecia, a sede de ir mais fundo na vida deles era uma constante. Foi isso o que fiz e é isso o que faço até hoje.

 

9 - Qual a importância de criar uma plataforma como a casablack?

A plataforma casablack existe para naturalizar a presença negra no Brasil. Hoje, plataformas afrocentradas são dedicadas, em sua maioria, à denúncia (que é extremamente necessária, porém estigmatizante) e ao que chamam de "militância". 

A casablack é uma empresa de conteúdo, eventos e brand services multiplataforma, criada para enaltecer nossas criações e narrativas. É conteúdo on e off de empoderamento e inspiração. É para contar histórias. Para falar e para promover eventos e experiências em cinema, literatura, música, moda, história, empreendedorismo, artes e estética — sempre afrocentrados — de forma pop e contemporânea, com o objetivo de potencializar, inspirar e celebrar a existência negra. 

Porque, assim como em qualquer espaço com potencial formativo e comercial, o digital precisa ser um espaço diverso. Isso é fundamental para ecoar a perspectiva das pessoas negras sobre suas próprias vivências e ajudar a formar as demais pessoas que acessam esses conteúdos.

10 - Criatividade é o primeiro ingrediente para inovação, como você vê isso sendo utilizado pelos creators brasileiros?

Em um olhar muito geral, que retorna a impressão do que o algoritmo me entrega, entendo que há uma commoditização dos conteúdos. Pessoas empregando formas ou se tornando reféns das trends. O que nos traz uma porção de creators muito semelhantes, sem traços distintos. 

Vejo poucos, e deveriam ser mais celebrados, creators realmente inovadores. E as ferramentas — porque redes sociais são isso para os creators — têm possibilidades infinitas para trazer o novo. Mas o meio é cruel, é cansativo, às vezes adoecedor. Compreendo que muitas vezes é preciso fazer o jogo, para contentar marcas, para se tornar visível. Porém, também é preciso ser aquele que se atreve a mudar o jogo.

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