Cidade Viva #4

"Meu desejo é contar histórias sobre ser humano"

Através de seus retratos gigantes, a artista Raquel Brust conta histórias de moradores de São Paulo

Qual é a cara de São Paulo? Talvez a resposta esteja na imagem que você vê do muro do Colégio São Bento, ali no Viaduto Santa Ifigênia. No meio do caos diário do centro da cidade, ao longo de quase 50 metros, os olhares atentos de quatro mulheres, indígena, branca, parda e negra, convidam a parar e olhar de volta. Todas elas têm nome, identidade e história. Todas elas têm um rosto.

São as histórias desses rostos que a artista visual gaúcha Raquel Brust busca contar por meio do Giganto, projeto que, desde 2008, estampa retratos em diferentes lugares de São Paulo. Sempre enormes, sempre em preto e branco, sempre impactantes, sempre relacionados ao tema escolhido ou ao local que ocupam, as imagens do Giganto fazem parte de um processo desafiador de usar a arquitetura da cidade como suporte para valorizar a expressão dos indivíduos que a habitam. 

"Gosto muito de ouvir as histórias das pessoas”, conta Raquel, de seu escritório-casa na Vila Madalena. “Eu me sinto conectada com as histórias como se as estivesse vivenciando. Acredito que a fotografia é muito imediata e nos permite viver lugares e culturas de maneira muito rápida".

Lugares de transição

Quem vê de passagem as imagens enormes nas paredes, pilastras ou empenas, não tem ideia do trabalho que cada uma delas deu até chegar ali. Antes de começar, nem a própria Raquel imaginava: foi na primeira experiência colando foto, com a ajuda de um amigo, em um muro do Largo da Batata, que ela entendeu que seu projeto ia precisar de muita, muita técnica.

"No início do Giganto eu usava imagens do meu arquivo, fotos de pessoas que nunca tinham visto uma cidade. Eu partia de uma reflexão de pessoas de fora do contexto urbano e as inseria nesses lugares de transição. O primeiro Giganto durou 24 horas. Caiu inteiro. A superfície não segurou. Não é um processo simples, nós vamos aprendendo com os erros”.

O Giganto começou a partir de um encontro de Raquel, então repórter fotográfica e retratista na Editora Abril, com o cinema documental — ela foi pesquisadora e diretora de fotografia em dois filmes do cineasta Otavio Cury: “Expedicionários”, de 2008, sobre o trabalho de médicos cirurgiões em regiões isoladas do Amazonas, e “Constantino", 2009, sobre as memórias do avô do diretor, que veio da Síria para o Brasil no começo do século passado.

Além do interesse pela pesquisa documental, Raquel trazia de Porto Alegre a proximidade com o movimento de arte urbana da cidade. "Eu vinha observando como a arte podia ir para a rua, ser pública, como isso era impactante no dia a dia das pessoas. Quando cheguei em São Paulo e me encontrei com o lambe, que é feito com folhas de ofício coladas, formando uma imagem, pensei que isso era algo que eu podia fazer para levar a minha fotografia para a rua".

Depois de algumas experiências, Raquel criou e inscreveu seu projeto no PROAC para fotografar e colar uma quantidade maior de retratos pela cidade — e foi selecionada. Nessa mesma época, conheceu a pessoa que viria a ser essencial na busca pela técnica da colagem: Flávio Vassoura, profissional do lambe de São Paulo, que colava cartazes de bandas, shows e eventos, e se viu sem trabalho no começo da Lei Cidade Limpa. Hoje, Vassoura é o chefe da equipe de colagem do Giganto.

Personas em grande escala

Na parede, o Giganto ganha a dimensão da cidade. Por isso mesmo, não existe tamanho médio de foto do projeto. “Isso vai da arquitetura do lugar. O importante é como essa imagem vai dialogar com o espaço, para onde o retrato vai olhar, se vai estar olhando para um semáforo, por exemplo”. 

O que define, também, é o tema, escolha que sempre marca o começo de um processo longo e trabalhoso — por isso, os longos intervalos entre cada nova imagem ou exposição. Existe trabalho de pesquisa, de produção, fotografias e o estudo do espaço antes de sair colando.

“Sou sempre orientada por um tema que me inspira. Uma vez escolhido, eu começo uma pesquisa de personagens, buscando quem são as pessoas que vou retratar, quem tem algo a acrescentar à história. Mas vou muito também pela expressão das pessoas. São Paulo é muito impressionante, tudo vai ficando na pele, sempre tem uma profundidade do olhar”, diz.

Raquel conta que várias pesquisas são feitas em campo. "Quando eu fiz uma exposição no Minhocão, em 2013 ou 2014, fiz a pesquisa ali mesmo, com as pessoas que moravam ou circulavam na região, no entorno. É assim que você vai descobrindo quem são os personagens afetivos da memória da cidade". 

Depois de selecionar, vem a parte de convencer as pessoas. E fotografar. 

"Algumas fotos são feitas de forma muito rápida e espontânea, às vezes na rua mesmo. Mas às vezes eu passo mais tempo com as pessoas, vou visitá-las, conhecer as casas delas, suas histórias” — é o lado documentarista da Raquel falando.

A riqueza de personagens de São Paulo foi retratada recentemente em mais uma exposição de Raquel no Minhocão, em 2019. Batizada “Diversidade”, a mostra ocupou as pilastras da parte de baixo do viaduto com imagens de esportistas, de ativistas políticos, da população de rua, entre outros personagens da cidade.

“Essa experiência foi muito intensa. Nós queríamos abordar a diversidade de uma maneira ampla, com tipos de corpos diferentes, pensando como a cidade trata as pessoas. Então foi muito um trabalho de ouvir, uma troca transformadora para todo mundo envolvido".

O tamanho de Mário de Andrade

A folga que Raquel quis se dar durante a pandemia, logo após ter uma filha, foi interrompida por um de seus maiores projetos e o mais recente Giganto até aqui: ocupar os 15 andares da lateral da Hemeroteca, prédio anexo da Biblioteca Mário de Andrade, com o rosto do próprio Mário. É o único Giganto que não usa uma imagem feita por Raquel, mas uma reprodução, cedida pela gestão da biblioteca que encomendou a homenagem.

A imagem precisava acompanhar o tamanho da importância de Mário, escritor, pesquisador, organizador da Semana de Arte Moderna de 1922 e um dos maiores articuladores do que entendemos hoje como cultura brasileira. O retrato foi selecionado, tratado, calculado, impresso, testado, reimpresso e, enfim, adesivado trecho por trecho, ao longo de cinco dias, por uma equipe de dez pessoas, na enorme lateral da Hemeroteca. E está lá ainda, como se protegesse o espaço que leva seu nome.

"Foi muito lindo mergulhar na obra do Mário, usar essa foto histórica dele. E foi um trabalho de produção imenso, são 400 tiras de adesivo. Uma coisa faraônica que demorou muito tempo pra acontecer. É um processo que envolve muita gente, tem a gráfica, tem a produção de aprovações, tem os testes. E na rua sempre pode acontecer tudo: chove, faz sol, você não sabe como a superfície vai se comportar. Sempre tem muita coisa que pode dar errado".

Muito além da instalação

É um processo que termina, geralmente, com uma reação emocionada também.

Raquel conta que as sessões de foto do Giganto são sempre muito especiais, uma vez que o vínculo entre retratista e retratado é a alma da obra. 

"As pessoas retratadas precisam ter muita confiança em quem vai criar esse retrato, precisam estar ali de corpo e alma, se entregarem mesmo. Até porque o resultado é uma imagem de sete, oito metros de altura. Então tem muita troca, as pessoas ficam bem emocionadas. Tem uma magia que acontece com o Giganto, porque as pessoas se doam com muito coração. Elas se sentem vistas, acolhidas, algo que todo mundo quer, essa coisa da solidão da multidão. No momento em que você se dispõe a ver e ouvir, as pessoas se entregam”. 

Onde encontrar:

https://www.instagram.com/projetogiganto/ 

https://www.instagram.com/raquelbrust/

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10/10 com Alê Garcia

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