Quem Entende #6

Tempo de Reparação

Luanda Vieira é jornalista, apresentadora do podcast O Corre Delas, da Obvious, consultora de D&I e criadora de conteúdo

Saber que a mudança é coletiva é uma certeza imutável, mas ao analisar o mercado de moda do Brasil a partir da perspectiva de diversidade e inclusão, rapidamente me lembro da didática explicação de Vernã Myers, vice-presidente de estratégia de inclusão na Netflix: “diversidade é chamar para a festa; inclusão é convidar para dançar”. Eu diria que atualmente estamos vivendo a fase de “chamar para a festa”, que não é suficiente. Um exemplo disso foi o desfile-manifesto da marca paulistana Mile Lab, da estilista Milena Nascimento, durante a 52ª edição do São Paulo Fashion Week, em 2021. A marca participou da maior semana de moda da América Latina por meio do projeto Sankofa, uma iniciativa para aumentar a presença de pessoas racializadas no evento, e Milena expôs na passarela a falta de apoio do próprio evento para sua participação na edição.

“Eles querem preencher essa cota de pessoas pretas, periféricas, mas oferecem o mesmo sistema que é oferecido a marcas lideradas por gente branca e de classe média alta. Quando me deparei com os custos daquilo, comecei a me questionar sobre o lugar em que eu estava sendo inserida. Como eu iria desembolsar, no mínimo, 40 mil reais para fazer uma coleção? Um valor que nunca vi na minha conta, ao qual nunca tive acesso?”, disse a estilista em entrevista à revista Glamour na época. Como esse, existem inúmeros casos na indústria que evidenciam quanto grandes marcas, veículos de comunicação e investidores ainda precisam ir além da camada superficial da inclusão e apostar na capacitação de profissionais. Em português claro: investir dinheiro.

Lembro como no meu primeiro dia como repórter de moda da Glamour, em 2017, eu estava determinada a entregar uma matéria com pelo menos 80% de fotos de mulheres negras em resposta à falta de representatividade na mídia que eu e toda uma comunidade assistimos ao longo da vida (e olha que estou falando exclusivamente sobre raça). Essas mulheres existiam, mas não eram vistas como possibilidade de comunicar moda. A minha vontade de transformar, junto com a de outras pessoas, não era suficiente enquanto o mercado, em todas as etapas da pirâmide, não tivesse consciência da importância, inclusive para a saúde do próprio negócio, de retratar um espelho da população, não apenas nas campanhas , mas também em suas equipes. De acordo com o Relatório Às Avessas, no Brasil, 70% dos profissionais do setor são brancos; quando incluídos outros segmentos vê-se que apenas 5% dos cargos de liderança nas 500 maiores empresas do país são ocupados por pessoas negras, segundo o IBGE.

Atualmente, como consultora de diversidade e inclusão, apresento esses e muitos outros números para convencer grandes empresas a criarem ações afirmativas voltadas à transformação do mercado, como abertura de vagas exclusivas para pessoas racializadas em todas as áreas e níveis hierárquicos; o oferecimento de letramento racial aos funcionários; o estabelecimento de metas de contratação de minorias; a criação de programa de desenvolvimento para funcionários negros e indígenas; colaborações com pequenos empreendedores e por aí vai. Em janeiro desse ano, o Grupo Arezzo, um dos meus clientes, anunciou o subsídio de faculdade para seus funcionários negros. A empresa se comprometeu a oferecer bolsas de estudos para cursos tecnólogos, de graduação ou pós-graduação, além de aulas de inglês.  A decisão é importante para que, internamente, esses funcionários possam mostrar seus talentos em pé de igualdade e, externamente, servir de exemplo a ser replicado.

Quanto a isso, em uma das minhas consultorias fui questionada se “essa onda de diversidade, equidade e inclusão” já não tinha passado. A minha primeira resposta é que quando falamos de transformação social não estamos falando de uma “onda”, mas sim de reparação histórica. A segunda é que, a médio e longo prazo, as marcas que ainda não direcionaram seus esforços e orçamentos para a verdadeira inclusão vão deixar de existir.

Digo isso porque, por sua vez, a comunidade negra já entendeu que precisa se fortalecer através do black money que, nada mais é, nas palavras de Nina Silva, fundadora do Movimento Black Money, do que o princípio segundo o qual “se não me vejo, não compro”. Essa conscientização faz com que negros não apenas gastem com empreendedores negros, mas com que passem a questionar grandes empresas sobre quem são as pessoas por trás da produção - quem realmente está lucrando com elas? A ideia é diminuir desigualdades e empoderar financeiramente pessoas negras, que, segundo dados do Instituto Feira Preta, movimentam R$1,9 trilhão da economia do país.

Tanto a Feira Preta quanto o Movimento Black Money trabalham em prol da independência financeira da população negra, promovendo oportunidades de negócios entre grandes marcas e pequenos empreendedores. Esses encontros fizeram nascer parcerias que se tornaram referência de como a indústria pode apoiar pequenos empreendedores negros e diminuir a apropriação cultural no país.Graças também ao seu talento, a estilista Isa Isaac Silva, da Isaac Silva, tem colhido bons frutos dessa mudança de raciocínio do mercado. Nos últimos três anos ela criou coleções em parceria com o Vista Magalu, braço de moda do Magazine Luiza, a C&A e a Havaianas.  A C&A, inclusive, apostou em outros nomes de afroempreendedores para dar visibilidade e vender em seu marketplace. Já a Stella Artois e a Farm patrocinaram as marcas do Projeto Sankofa na 53a edição  do SPFW.

Olho para o futuro com otimismo. Estamos construindo novas narrativas, mas ainda falta compreensão, vontade, letramento e movimentações genuínas. E saber que não partimos do mesmo lugar já é um avanço.

Anterior
Anterior

Ponto de Partida #6

Próximo
Próximo

Editorial: Vanguarda Tropical