Cidade Viva: "Aqui, fazer o corre significa não morrer"

Como o mundo do audiovisual moldou os desejos de um jovem de Parelheiros

A primeira coisa que se percebe ao falar com Wes Xavier, 27 anos, todos vividos no extremo sul de São Paulo, é que ele é muito gentil. Talvez essa característica venha do fato de que ao longo de boa parte da vida ele falou com muita gente - como aluno, educador, diretor de audiovisual e, mais tarde, da frente das câmeras.

Wes, que hoje vive e trabalha no Grajaú, há quase 35 km ao sul do Centro da capital, se apresenta como um trabalhador do audiovisual capaz de planejar, criar e editar conteúdo, alguém por dentro dos processos de elaborar, executar e pós-produzir uma ideia. Mas corre para dizer: não é só isso. "Não gosto de dizer que estou nos lugares. Acho que tudo é passageiro. Considero que estou sempre em trânsito." É um jeito de deixar claro que sabe que vem mais por aí.

"Uma coisa que me atrai bastante é o trabalho com consumer insights", conta para explicar seu momento atual como consultor e analista de tendências no contexto periférico, sempre buscando entender o mundo. "Me interesso principalmente por olhar o consumo que existe nas periferias, estar nesse ambiente trabalhando com empresas que querem falar com esse mercado. Porque a periferia muitas vezes não é reconhecida pela potência que tem, ainda é segmentada de uma forma excludente, classista e racista."

Em 2022, em um trabalho com o grupo Consumoteca, laboratório de tendências que mapeia o consumo na América Latina com recorte antropológico, Wes passou a entender a profundidade com que as suas próprias vivências o habilitam a chegar a consumidores que as marcas frequentemente não compreendem.

"Foi quando percebi essa fragilidade de entendimento sobre a periferia. Um erro comum é tratar as periferias como uma coisa só, ainda se fala de periferia de forma muito singular, como se fosse uma única coisa, sempre em um contexto de vulnerabilidade, que precisa de suporte para alcançar algo. Existe isso, sim, mas existe muito mais que não está na compreensão desses âmbitos." 

Nesse momento Wes notou que tinha um conhecimento específico e muito valioso sobre as potências das periferias. "Então, é isso que tenho estudado, aprofundando um processo, que sinto que é pioneiro, de mostrar que existem antropólogos periféricos, que trabalham com o consumo voltado para o entendimento dos comportamentos periféricos."

O poder de uma educação para a cultura

A vida de Wes no extremo sul da Zona Sul paulistana, a maior e mais populosa região da cidade, tem pouco a ver com o clichê da "cultura periférica" que a mídia mainstream (o termo aqui é totalmente adequado) gosta de tentar colar em tudo que não tenha jeito de elite de grandes centros urbanos.

Mas a trajetória de Wes é marcada por algo comum a muitas histórias: a forte figura materna. Foi a mãe de Wes quem o tirou de casa para estudar, para participar de oficinas de audiovisual em ONGs, que o levava em videolocadoras para escolher filmes. "Eu sou filho único, tive uma infância muito boa.Parelheiros tinha muito verde, eu era uma criança que brincava no mato. Mas minha infância também teve muita violência, e minha mãe buscava alternativas para a gente sair de casa - podia ser videolocadora ou campo. Meus processos de socialização se davam muito através da tecnologia. Essas duas coisas me permitiram dar uma vazão a toda essa energia.

As ONGs que Wes frequentou na infância e na adolescência, como Manaim, Bem Comum e O Bom do Brasil, deram a direção: primeiro ele foi chamado para trabalhar como educador e depois se viu totalmente imerso na cultura,  com base suficiente para tocar seus próprios projetos.

"Sempre estive próximo de projetos sociais voltados para a emancipação, para mostrar aos jovens que existe cultura que a gente pode acessar em São Paulo e que eu, um jovem de Parelheiros, posso ocupar esses espaços de cultura,  pensando sobre cultura como projeto de vida mesmo. Eu tive educadores, facilitadores muito importantes e simbólicos que me ensinaram a técnica para eu fazer o que queria fazer."

O primeiro contato com um computador e com uma câmera foi em ONGs. E foi dentro de uma delas que nasceu o Cine Quebrada. 



Protagonismo do audiovisual

Em 2018, o Cine Quebrada surgiu a partir desses aprendizados, para ofertar ferramentas do audiovisual aos jovens de Parelheiros e de Vargem Grande Paulista. "Eu queria que eles pudessem se apropriar das próprias comunidades através desse olhar que é mediado pela câmera. Os interessados vêm, produzem seus documentários", explica. Através do que chama de "audiovisual possível", o Cine Quebrada se estabeleceu como uma produtora que dá visibilidade para artistas que não têm ponte com o mundo digital. 

A tecnologia e o contato intenso com outras pessoas foram essenciais para Wes ir entendendo o potencial de uma câmera de vídeo. E há menos de um ano, após quase nove fazendo casting, escrevendo roteiro, dirigindo set e editando vídeos, ele começou a ficar confortável na frente da câmera - como, por exemplo, na série CaosCast, da Consumoteca. 

"Isso foi uma virada que mudou muito a minha vida, me mostrou que sou capaz de contar minha própria história. Antes, eu tinha receio. Fiz muitos projetos emblemáticos no Cine Quebrada, sempre buscando outras pessoas para serem protagonistas. Mas me ver como protagonista era um anseio meu, ainda que desafiador. Me permite olhar para mim mesmo como agente de transformação da realidade, que é o que quero ser."

Vem aí

Através do Cine Quebrada e de seu outro projeto, o Vivência011, atuando como produtor, Wes também criou a série documental Vivência Lab, no Youtube. "O Sonho Periférico", publicado no fim do ano passado, faz parte da série "Os Ancestrais do Futuro" e fala sobre a importância dos sneakers na cultura das periferias, como forma de reconhecimento da participação na sociedade. O projeto trará uma nova série, no segundo semestre de 2023, atualmente em processo de casting e pré-produção. As temáticas sempre passam por moda, geração Z e o círculo de divulgação e apropriação de tendências de moda, o mercado de luxo versus as periferias e os muitos processos de ressignificação de signos de consumo.

"Pensamos bastante no que significa ser periférico. As pessoas falam sobre o ser periférico como um guerreiro, que não desiste facilmente. E não é sobre romantizar o esforço, mas valorizar o corre. Aqui, estar em movimento significa não morrer. Eu estou em movimento para garantir a minha vida, sempre nessa lógica de construir algo que não é só pra mim, porque estou em rede. O corre que não é solo, é de transformação coletiva."

Movimento é o que Wes cita quando responde sobre seu futuro próximo: onde se vê em dez anos, após dez anos tão definidores como esses últimos que viveu?

"Há cinco anos eu estava atirando para vários lados, porque não sabia o que ia dar certo", conta. "Grande parte dos caminhos que me trouxeram até aqui foi a mediação do ódio pela minha condição de vida, meu contexto, meu ambiente. Hoje eu me enxergo, não estou atirando para tantos lados. Estou focado em algo especifico", explica.

"Quero estar em um local que possa integrar tudo o que já fiz. Em dez anos me vejo em um local em que os anseios de agora estarão muitos distantes, trabalhando com antropologia das periferias e falando com mais autoridade sobre comportamentos e tendências. Quero falar sobre corpos que não estão sendo vistos em contextos de cultura a partir de um lugar positivo, considerado a transformação dessa realidade que bate na porta de quem às vezes não tem nem porta para se bater."

Para seguir

https://medium.com/@ogumdoce

https://www.instagram.com/ogumdoce/

https://www.instagram.com/vivencia.lab/

CaosCast, podcast do grupo Consumoteca

Cine Quebrada no YT

Anterior
Anterior

10/10 com Michele Simões

Próximo
Próximo

Editorial: Desafio em Branco