10/10 com Michele Simões

Michele Simões é estilista, consultora de moda, TEDx speaker e designer de futuros anticapacitistas. Fundadora do Fashion Day Inclusivo e do Meu Corpo é Real, ela busca promover equidade de experiência para consumidores com deficiência construindo acessos e conectando educação, acessibilidade e co-criação de soluções.  


1 - Como começou a sua jornada na moda?

A moda sempre esteve presente na minha vida, principalmente através da minha mãe, que sempre foi muito conectada com moda. Eu sempre olhei para ela com encantamento em relação a tudo que ela construía, à sua identidade, e também à forma como ela vestia a mim e a minha irmã, sempre com muita criatividade. Então, esse primeiro olhar de atenção à moda vem da infância. Depois fiz faculdade na Universidade Estadual de Londrina, onde me direcionei para a área de design de produto e, em seguida, fui trabalhar em algumas marcas em São Paulo. Esse foi o período em que me acidentei. 

Foi a partir daí que comecei a sentir uma inquietação por não conseguir entender porque as roupas que eu vestia antes passaram a não me servir mais, mesmo eu tendo o mesmo corpo de antes, porém agora em uma cadeira de rodas. As roupas não se adequavam ao meu corpo e essa se tornou a minha principal questão. Durante a faculdade, eu não tinha tido nenhuma informação sobre corpos com deficiência. Naquela época, por volta de 2002, não se falava sobre diversidade na moda, então o corpo com deficiência nunca foi nem abordado em qualquer temática. 

2 - O ato de se vestir pode ser muito desafiador para pessoas com deficiência. Como a moda inclusiva pode mudar essa realidade?

Quando a gente fala em moda inclusiva, não podemos nos ater só aos produtos, essa é uma das minhas grandes premissas. Temos que considerar que quando falamos de consumidores com deficiência existe um espectro gigantesco de pessoas e especificidades. Dentro dessas especificidades, existem diferentes demandas, e isso ainda não é nem entendido nem explorado no campo da moda. 

Ou seja, se você é uma pessoa em cadeira de rodas como eu, não significa que a sua demanda em relação a roupas, tanto em termos estéticos quanto funcionais, seja a mesma que a minha. Esse é o maior desafio da moda inclusiva.

Existem muitos pontos que o mercado nem imagina que têm valor para um grupo de pessoas. É o caso de aspectos associados à segurança e à autonomia na hora de vestir uma roupa. Por exemplo, se você está no trabalho e precisa ir ao banheiro faltando 15 minutos para a próxima reunião. Para uma pessoa sem deficiência isso não quer dizer absolutamente nada. Mas para uma pessoa com deficiência, é uma questão grande. Dependendo da deficiência, ela tem que considerar onde fica o banheiro, quanto tempo demora para usá-lo e vestir a sua roupa para conseguir chegar a tempo para o compromisso. 

A moda inclusiva reflete uma série de aspectos sociais que, para a maior parte das pessoas, não existem. Questões como a hipersensibilidade tátil de uma pessoa no espectro autista e sua hipersensibilidade aos sons e cores de uma loja, por exemplo, precisam ser consideradas. Já com relação a uma pessoa com deficiência visual, o tato e o emprego da audiodescrição de uma peça faz toda a diferença nas informações de construção de estilo.

Quando falamos de moda inclusiva, precisamos pensar nesses recursos, em fornecer acesso a segurança, independência, construção de estilo, conforto etc. A partir disso, é possível haver uma série de experiências que transcendem o que é considerado padrão no mercado de moda atual.

3 - Onde você busca inspiração?

Essa é uma pergunta um pouco complicada para uma geminiana responder… Sou uma pessoa muito inquieta, gosto de mergulhar em diferentes assuntos, nunca fico em uma zona única de atuação. Acho que até por causa disso minha carreira se desenhou em diferentes áreas que expandem a moda - já fiz parte de projetos completamente diferentes e isso me satisfaz muito.

Eu tenho uma postura curiosa de ler, assistir e conversar com pessoas muito diferentes de mim. E entendo isso como uma ferramenta muito potente. No mesmo sentido, entendo a deficiência como uma ótima ferramenta para pensar em inovação, justamente por ser parte de um campo inusitado para a sociedade em geral. É assim que eu vivo, mergulho no que me causa uma sensação de desconhecimento, de inquietação, porque sei que é onde vou encontrar um mar de coisas para me inspirar!

4 - Conta mais sobre o seu projeto Meu Corpo é Real?

O Meu Corpo é Real nasceu em 2015 durante um curso de pós-graduação em comunicação e cultura de moda. Lá eu me deparei com uma classe que nunca tinha tido qualquer aproximação com consumidores com deficiência. Juntei isso a toda a minha experiência como estilista e pessoa com deficiência e resolvi criar experiências para promover a desmistificação desse assunto. 

Dentro disso, nasceu um primeiro projeto que se chamava Fashion Day Inclusivo, no qual eu levava estudantes para fazer uma imersão em hospitais de reabilitação, e, a partir daí, passávamos um dia focado no desenvolvimento de ações que pudessem incluir pessoas com deficiência no segmento de moda. Esse projeto foi evoluindo e passou a ser realizado anualmente até a pandemia. Eu costumava dizer que acontecia uma inclusão reversa, porque todo mundo aprendia algo - a pessoa com deficiência ampliava o seu repertório de moda através do contato com as ideias apresentadas pelas pessoas do segmento de moda e beleza, e, por outro lado, os voluntários do projeto que, em sua maioria eram pessoas sem deficiência, aprendiam muitas coisas ao incluir pessoas com deficiência nas suas narrativas pessoais de trabalho. 

Assim, fui criando um espaço com essas informações e comecei a desenvolver ações que pudessem fomentar o mercado de moda para pessoas com deficiência. Fiz mini documentários e dei oficinas para ampliar o repertório de PCDs dentro do mercado de moda e, com isso, passei a ser convidada para participar de outras iniciativas em diferentes nichos. 

Em 2020, demos início a um processo de reavaliação da forma como o Meu Corpo é Real pode atuar nesse mercado e, desde então, passamos a trabalhar com equidade de experiências, desenvolvendo jornadas de inclusão dentro das marcas. Trabalhamos não só com marcas de moda inclusiva, mas também com marcas em geral que estão buscando ser mais inclusivas. Por isso, primeiro precisamos entender em que momento a marca está e o que é possível fazer nele para iniciar essa jornada, e depois criamos trilhas, materiais, cartilhas e promovemos o laboratório de empatias, que são experiências criadas para que os colaboradores de uma empresa experienciem e cocriem iniciativas para consumidores com deficiência.

5 - Como as marcas podem trazer mais equidade de experiência para os consumidores PcDs?

Eu costumo dizer que precisamos trocar o “não” pelo “como”. Estamos acostumados a ouvir da maior parte das marcas: “não temos acessibilidade, não trabalhamos com esse público, não temos conhecimento aprofundado sobre esse público”. Por isso, é preciso trocar o não pelo como - como eu posso desenvolver caminhos para que o meu produto seja mais acessível, como posso tornar a experiência desse público melhor dentro dos meus espaços. 

Através dessa troca, abrem-se caminhos para algo muito importante acontecer: pessoas com deficiência estarem presentes no processo de criação e de movimento de soluções. O que costuma acontecer é as pessoas que desenvolvem soluções não terem conhecimento do problema. Quem desenha a solução precisa estar sentado na mesma mesa de quem vive o problema. 

Infelizmente, quando olhamos para o mercado de trabalho, as pessoas que desenvolvem a solução não são pessoas com deficiência, pois estruturalmente essas pessoas estão excluídas, inclusive no próprio mercado de trabalho. Então, para garantirmos equidade de experiência, precisamos envolver essas pessoas na co-criação dentro das marcas.

6 - Por muito tempo a indústria da moda impôs limitações e excluiu corpos e, apesar disso estar mudando, muitas pessoas com deficiência ainda não exploram seu estilo pessoal. Como consultora de estilo, você tem alguma dica para compartilhar?

Muitas pessoas sem deficiência também não exploram o seu estilo pessoal porque a moda sempre foi um mercado muito excludente. Então, até pouco tempo, nós tínhamos um único corpo sendo trabalhado. Isso vem mudando, mas, de maneira geral, a moda ainda é um lugar incômodo para a maior parte das pessoas. 

Quando falamos de consumidores com deficiência isso é ainda pior, porque essas pessoas não conseguem nem se visualizar nem se reconhecer em nada. Então, nos processos de entrevistas, na maior parte das vezes que pergunto sobre referências para esses consumidores com deficiência, a maior parte dos entrevistados não têm nenhuma. Não têm uma referência rápida de estilo. Isso já revela como funciona o desenvolvimento de repertório para um público que nunca se conectou com nenhuma imagem, nenhuma história dentro da moda. Isso precisa ser construído com urgência. 

Como dica, acho que não é nenhuma novidade que pessoas com deficiência precisam criar esses acessos na marra. Por exemplo, lembro quando  fui fazer um intercâmbio: não havia nenhuma agência preparada para mim, não havia um case em que eu pudesse me espelhar, então eu tive que ir lá testar e fazer. E é exatamente assim que funciona quando a gente fala de moda para pessoas com deficiência. Precisamos sentar na frente do espelho e construir a nossa própria imagem, testando roupa pra ver o caimento, pra ver o que funciona e o que não, entendendo o motivo de gostar de tal peça, precisamos dissecar os significados. 

Então a dica que eu dou é fazer como eu fiz anos atrás e literalmente se colocar na frente de um espelho e começar a experimentar. Por sinal, é engraçado que as pessoas me perguntam das poses que faço no Instagram. Elas surgiram de eu ficar na frente do espelho experimentando, porque quando pensei “quero fazer um look bacana”, “quero experimentar uma pose bacana”, fui olhar na internet e não havia nada pra mim. Por isso, construir o nosso estilo é uma baita ferramenta de autoconhecimento.

7 - A legislação garante o direito de participação plena da pessoa com deficiência na sociedade, porém a falta de acessibilidade estrutural e produtos funcionais ainda dificulta muito essa realidade, como podemos mudar isso? Qual o papel do design nesse processo?

Estar presente na legislação já é um ponto positivo, acho que esse é um grande passo. Inclusive, diante de outras legislações do mundo, a nossa está entre as mais avançadas. Mas, por outro lado, sabemos que na prática ela não funciona. Quando investigamos algumas frentes que deveriam trabalhar em conjunto, começamos a entender o motivo de algumas coisas não funcionarem. 

Dentro da acessibilidade arquitetônica, por exemplo, existem normas que preveem que as construções cumpram com os critérios de acessibilidade. Porém, nosso sistema de ensino ainda forma arquitetos que não têm conhecimento algum sobre isso, ou seja, temos uma legislação que traz uma série de recortes super importantes para tornar a nossa sociedade mais inclusiva, mas, ao mesmo tempo, temos um sistema de ensino super atrasado formando profissionais que poderiam ser aliados, mas que acabam construindo mais barreiras por falta de informação e conhecimento. Acaba sendo um contra senso, não adianta mexer num lado se o outro está descoberto. 

É preciso ter um olhar holístico, não se pode olhar só para uma ponta do processo. É o que eu falo diante do cenário de moda inclusiva: “não podemos só falar de produto, precisamos falar de toda a cadeia, de como é o processo de desenvolvimento desse produto, de quem é a pessoa sentada na mesa de criação, de como é o sistema de atendimento das lojas”. Não adianta  uma marca criar uma coleção com peças inclusivas se não se compromete a tornar suas redes acessíveis, se seu atendimento é capacitista - precisamos ter um olhar integral para criar soluções que funcionem. 

8 - Para você, o que significa desenhar a mudança?

Desenhar a mudança é acessar o novo, sem medo do desconhecido. É desenhar o invisível, porque nem tudo está no físico. Para isso, precisamos ter uma mudança de mentalidade, precisamos ser ativos e perder o medo de errar. Nós temos muito medo de errar, mas é justamente quando nos aventuramos que entendemos que o erro pode trazer novas formas de pensar. Acho que todos nós em alguma instância temos esse medo. E acho também que desenhar a mudança requer a coragem de sair das fórmulas prontas. Desenhar o novo é entender que o futuro começa pelo movimento que fazemos hoje.

9 - Por onde começamos a incluir mais?

Isso seria extremamente desafiador se estivéssemos falando há alguns anos atrás, quando não tínhamos internet. Com a internet ao alcance de um dedo e as mídias sociais, temos acesso a algo muito importante: a informação. Através dela, podemos conhecer mais sobre outras realidades, podemos nos relacionar com pessoas com deficiência, por exemplo, e assim, entender melhor suas necessidades. Essa é uma das melhores formas de  começar a incluir. É através da relação com o outro que se começa a ter intimidade, e isso faz com que se chegue em um lugar muito importante, que é o da segurança de poder fazer perguntas, algo que muitas pessoas não têm. 

Assim, vai sendo criada uma relação tão forte que a pessoa não precisa estar nos mesmos lugares que você para que a importância das necessidades e especificidades dela estejam presentes na sua vida. Por exemplo, eu tenho amigos que hoje em dia quando vão a um bar perguntam sobre a acessibilidade do local, porque eles conviveram comigo e entendem que esse é um valor socialmente importante - todo mundo precisa poder exercer o direito de ocupar os espaços. 

Quando convivemos com pessoas com deficiência, essas questões se tornam um valor nosso. Pessoas com deficiência não podem estar sempre sozinhas reivindicando acessos e espaços, nós precisamos de pessoas sem deficiência comprando essa briga junto com a gente - é um processo muito importante para fortalecermos a inclusão.

10 - Como você visualiza um futuro anti capacitista? 

Eu visualizo um futuro anti capacitista onde o especial deixe de existir, onde as pessoas não precisem buscar na internet “moda inclusiva”, “moda para pessoas com deficiência”, “restaurante com acessibilidade”, “restaurante com banheiro para pessoas com deficiência". Essa é uma imagem que resume demais, mas acho que ela deixa claro que eu acredito em um futuro onde as pessoas se reconhecem como pessoas e não como grupos especiais, onde pessoas com deficiência são colocadas em uma  zona paralela. Eu acredito em um futuro onde todo mundo se reconhece e se percebe dentro da diversidade, se respeita e entende que muitas vezes o que é diferente não é necessariamente ruim, mas sim uma lente nova para pensar um espaço muito maior, para um mundo muito melhor. 

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